
“Cursos profissionais e artísticos são desconsiderados”
Testemunho e propostas de Professor do Ensino Profissional.
Antes de tudo, penso que o ensino à distância deve ser considerado como a estratégia possível na crise em que vivemos e nunca como alternativa ou complementaridade àquele que é o fundamento pedagógico da escola e que deverá continuar a ser – o ensino presencial como contexto dinâmico de interacção contínua entre professor-aluno onde as aprendizagens, as trocas culturais, os projectos, as avaliações, as participações, dúvidas, reflexões e críticas se vão desenvolvendo, respeitando as diferenças e os ritmos de prestação dos alunos.
Há quem queira implementar, qual “febre de ficção futurista” ou “manipulação ideológica centralista”, o e-learning nos mais variados contextos da vida em sociedade, com inspiração nos websummits, nos workshops, nas vídeo-conferências empresariais e noutras tantas oportunidades tecnológicas que favorecem grandes grupos económicos e sobretudo a poupança de recursos humanos. Aliás, o conceito de sociedade do conhecimento foi substituído por sociedade digital, promovendo toda uma lógica em que se considera a tecnologia como fim e não como um dos meios ao dispor das actividades humanas (ideologia que até se estende ao propósito político – o ministério da economia é também o da transição digital, por exemplo).
No meu entender é uma deturpação da análise social – a classe dominante pode e deve utilizar a escola para adequar força de trabalho a mercados cada vez mais virtuais e tecnológicos (daí a inclusão das tic nos currículos, a lecionação da operacionalização de sistemas globais informáticos nos cursos profissionais – exemplo: turismo – reservas; design e marketing), mas agora “substituir aos poucos” a prática pedagógica da proximidade das relações humanas e do estudo real do meio é um perigo para a construção do espírito crítico e da intervenção cívica, assim como para a consciencialização e aprofundamento do conhecimento da realidade e crescimento saudável (sabendo-se os constrangimentos e impactos que a obsessão pelas acções “virtuais” têm produzido ao nível da qualidade de vida de crianças, jovens e adultos – exploração do tempo livre pelo teletrabalho, redes sociais e “fakenews”, jogos electrónicos e dependências, controle da liberdade individual, abusos de natureza sexual e relativos à legitimação da violência e do racismo).
Outro aspecto não menos importante prende-se com as desigualdades criadas face aos alunos e com o exercício da função docente – são preceitos constitucionais o direito de todos e todas à educação (combate ao insucesso escolar pela diversificação de currículos e pela operacionalização de ensino diferenciado e personalizado face a contextos culturais diferentes ou a outras necessidades educativas especiais, mas sempre visando a interação entre todos na “igualdade da turma”) assim como a liberdade de ensinar (nenhum poder da era da democracia tem, até agora, imposto a prática pedagógica ideal e obrigatória, abrindo-se espaço e possibilidade de cooperação com novas pedagogias ativas, ligadas ao meio e à inclusão e à valorização da diferença).
Num contexto em que o professor se tornou “funcionário” e que as hierarquias estimulam o centralismo de decisões (“agradar, vigiar e judicializar o serviço docente pela institucionalização da prova e da evidência”), cabe como função sobretudo praticar a monitorização e raras vezes actuar com propostas “vindas de baixo” na resolução dos problemas, o que cria condições para que o “ensino à distância” passe a ser institucionalizado e agrave as desigualdades – a cultura escolar não aprendeu a relativizar códigos linguísticos nem a incluir criticamente conteúdos da cultura popular, afastando do sucesso e do “prazer de aprender” crianças e jovens das classes mais desfavorecidas, bem como minorias étnicas e migrantes; com o ensino à distância tais problemas agravam-se – não é só a questão do acesso às tecnologias pela parte das famílias, mas também a sobrevalorização do apoio familiar escolar às aprendizagens em casa (que favorece uns e exclui ainda mais outros tantos), assim como a menor possibilidade de apresentar explicações mais concretas e ligadas aos habitus culturais diferenciados, simplificando discurso e argumentos, e praticar conteúdos relacionando-os com a vida quotidiana, que a aula presencial permite.
No meu caso pessoal, adoptei o método mais democrático possível: a comunicação por email (informação de conteúdos, esclarecimento de dúvidas, trabalhos e fichas formativas), com resultados satisfatórios (nas 5 turmas de cursos profissionais do ensino secundário que leciono, em 3 houve feedback total e em 2 – primeiros anos -, registaram-se alguns problemas pois nem todos os alunos apresentaram meios ou motivação para aderir ao sistema), mas sei que, especialmente no ensino básico, a utilização da videochamada ou vídeo conferência é mais exclusiva, observando-se grandes desigualdades na progressão da aprendizagem dos alunos (por vezes, nem metade dos alunos acompanha; só talvez a tele-escola terá atenuado os problemas).
Por último, e pedindo desculpa pelo alongar do texto, considero criticáveis as opções institucionais comunicadas para o ensino secundário que excluem grande parte dos alunos. Para já a realidade deste grau de ensino é diversificada, observando-se que crescem as inscrições nos ensinos profissionais e artísticos, se já não constituem a maioria da população discente… O discurso oficial, respeitando a ideologia dominante, aponta medidas para o secundário centradas nos cursos científico-humanísticos e, ainda mais afunilado, na grande missão do acesso ao ensino superior através dos exames. Não é de estranhar pois a própria avaliação das escolas é feita com base nos rankings dos resultados dos exames. Mas a opinião pública fica com uma visão deturpada – a abertura de aulas presenciais só abrange uma minoria dos alunos do secundário (os dos cursos regulares ou dos profissionais que pretendem seguir os estudos, através de exames de candidatura às faculdades ou de provas de exame de equivalência, e apenas nas “disciplinas eleitas” sujeitas a esse tipo de avaliação), sendo que os cursos profissionais e artísticos mais uma vez são considerados “resíduo” e desconsiderados nos seus currículos e certificados de competências – ex. um momento crucial para os cursos profissionais do segundo e terceiro anos é a formação em contexto de trabalho (estágio nas empresas) que, sabendo-se dos constrangimentos em praticá-lo no imediato, não podem nem devem no meu entender ser postos de lado, o que acabou por acontecer – a estes “jovens” não se aplica o rigor, a exigência e a centralidade que os exames significam para os outros, pois farão “estágios simulados” e tudo se vai resolvendo no mundo do faz de conta de quem não pertence às elites discentes.
Face à situação de emergência e respeitando as diretrizes de quem cientificamente estuda e analisa a evolução da pandemia (instituições científicas da saúde), penso que estas modalidades de ensino à distância são “remendos” e como tal poderemos apenas gerir o agravamento de desigualdades. Sendo assim penso que há que mobilizar os recursos do meio, poder local e/ou sociedade civil (juntas de freguesia, instituições que já fazem apoio domiciliário, associações de jovens, serviços de assistência social das câmaras) para chegar a todos os alunos viabilizando meios simples de contacto à distância (fornecimento temporário ou oferta de computadores/tablets ou de smartphones) ou alternativas tradicionais de contacto (colaboração com as escolas e professores no fornecimento de fotocópias de conteúdos ou de exercícios/ propostas de trabalho/fichas formativas; materiais didáticos, assim como recolha dos documentos para posterior avaliação). O ideal seria retomar aos poucos a formação presencial, com cumprimento de todos os requisitos legais e de prevenção (nem só os exames são metas educativas). Como não será provavelmente possível, o que não concordo é que a escola só esteja aberta para alguns – a elite, por mais que existissem alternativas para isso não acontecer. Por exemplo, visto os exames neste contexto só terem como objetivo o acesso à universidade, seriam as próprias universidades a realizá-los, procedendo a essa seleção num período posterior (início do próximo ano letivo); no caso dos cursos profissionais os estágios deveriam também ser adiados para momento possível, compensando-se a antecipação da formação mais teórica e técnica em sala de aula ou à distância no período em que não podem ser realizados; porventura no último ano de formação (3ºano), com vista a cumprir a finalização do percurso escolar dos alunos, poderia ter sido adoptada a seguinte regra – dispensa de frequência do estágio do 3ºano e repetição da avaliação do estágio que foi cumprida no 2ºano (solução mais objetiva que os “estágios simulados” e que relevam de uma experiência concreta que os alunos tiveram no mundo do trabalho).